Decifra-me (não hei de devorá-lo)

Se eu não tivesse medo de olhar pra casas escuras e o choro de cachorro não me agoniasse a ponto do meu coração disparar. Se eu não tivesse crescido com meus primos e não fosse a menina feia do ensino fundamental. Se eu não quisesse ser um leopardo, se eu não fosse uma criança tímida, se minha mãe não tivesse me magoado e meu pai não tivesse ido embora. Se meu avô não falasse alto e eu não tivesse imitado o galope dos meus cavalos de brinquedo. Se eu não tivesse gosto de menino, se minhas amigas fossem tão tranqüilas a ponto de me deixar fazer qualquer estupidez. Se eu não fosse tão sensível e não vivesse com dor de cotovelo, como se cada amor fosse a primeira vez. Se eu não quisesse cuidar do mundo, se eu não me importasse com meus amigos de festa, se eu soubesse desabafar. Se eu confiasse mais nas pessoas. Se cada vez eu me magoasse eu tivesse desistido, e se eu tivesse medo de lutar e levar porrada sempre que fechasse os olhos. Se minha avó não fosse a melhor pessoa do mundo, se eu não fosse tão desengonçada, se eu não quisesse ser uma bailarina, se eu sempre repetisse a dose. Se eu tivesse mais prudência, se eu não quisesse dividir o sono, se eu soubesse deixar tudo passar. Se eu não fosse tão teimosa, se eu não vivesse de amor, se eu não gostasse tanto de canela, de chocolate e de gente que canta no meu ouvido. Se eu não me emocionasse com música clássica e declarações de amor, se eu não fosse carente, se eu não sorrisse com tanta intensidade, se eu gargalhasse sem fazer barulho. Se eu não fosse assim tão cheia de danos. Se eu não fosse tão cheia de coragem pra recomeçar. Se eu não desse tanto amor até sufocar. Eu não seria eu.

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