Crônicas do cotidiano - A corrida e a mureta

Você sempre volta aqui.
Mesmo dizendo que não quer.
Mas aí você vem aqui, pra tentar ler as emoções que seus olhos pouco generosos com o futuro e com a vida não conseguiram alcançar.
Mas já que você veio, vou te contar uma história que pretendia contar
Contigo nos meus braços, vendo seus cílios longos balançarem de sono
E depois que você vier aqui e ler, me diz o que achou
Eu estava sozinha no estacionamento do shopping
Acendi um cigarro e contemplei a miséria daqueles que trabalham
E contemplei o fedor daquele estacionamento vazio
E contemplei o horror e o conforto de estar ali, sozinha
O horror porque fedia
O conforto porque minha solidão me permitia, pela primeira vez,
ser eu sem ser junto de mais ninguém.
E nesse exato momento em que eu assoprava a fumaça,
uma criança passou.
Uma daquelas crianças pequenas e amáveis, com um laço muito grande na cabeça
Ela devia ter no máximo dois anos de idade, e ela corria como eu jamais conseguirei correr (você se lembra de como eu corro)
Ela corria com um desatino e uma alegria que não se despedaçavam na dúvida
Ela corria com olhos marrons perigosos de cavalo selvagem
Que nunca olhavam pra trás, só pro destino
Que nunca se inclinavam pro lado, só em linha reta
Com uma segurança que ser humano nenhum jamais sentiu na vida (a não ser a segurança que eu sentia quando segurava suas mãos).
E sua mãe, aterrorizada ia atrás, tentando acompanhar aqueles bravos passos de sandália infantil.
Eu fiquei ali por mais alguns segundos, meio embasbacada com a qualidade da corrida daquele bebê.
1. ela corria melhor do que eu
2. ela não sentia medo
3. eu queria ser aquele bebê
E aí eu vi que correr sozinha com os pés no chão é mesmo correr com segurança, certeza e precisão. É correr com prazer, e desatino, mas ainda é correr sozinho. Que tipo de solidão era aquela? Era aquela solidão que não é solidão, mas auto-preenchimento? Nenhum de nós nunca conseguiu ser assim, sendo você um atormentado e eu uma eterna pedinte.
Pois deu-se que, no exato segundo em que você começou a invadir minha cabeça, a criança retornou. E erguida pelos braços da mãe, foi colocada em cima de um muro, o mesmo muro onde eu estava sentada. Era uma mureta estreita que não comportava minha bunda, mas comportava perfeitamente suas sandálias infantis. Eu esperei pelo próximo ato de coragem daquela pequena guerreira que usava laços gigantes nos cabelos, mas dessa vez, seus passos foram tortos e bambos. Foram passos fracos e inclinados na direção dos braços da mãe. Ela não andou sozinha e logo desceu.
E eu fiquei ali, embasbacada.
1. ela corria tão bem, mas andava tão mal
2. ela sentia tanto medo
3. eu não queria ser aquele bebê. Eu era.
Você vê, Outro, nós não temos medo da corrida desatinada. Não são essas as correntes que nos prendem. Não são essas as correntes que te transformam no monstro, ou me transformam na pedinte.
Nós podemos correr livremente e fugir de todos, enquanto ainda mantivermos os pés bem firmes no chão. Porque o chão existe.
E é porque o chão existe também que a gente sente medo. A corrida é rápida e deliciosa. A adrenalina, a bravura, o impulso.
É da mureta que a gente tem medo.
É de perder o equilíbrio.
A gente não tem medo de correr, a gente tem medo de cair.
E eventualmente, a gente cai. A gente cai porque o chão existe, e porque a gravidade é inevitável, como em ''Fake Plastic Trees''.
Então, por fim, me diga o que você acha? Será que devemos deixar de correr porque o chão existe, ou será que a gente precisa mesmo é aprender a cair?

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