O boteco da rua do Vovô Tino.


Domingo cedo, acordo depois de um período breve de torpor, a insônia cobrando seu preço. Gole de café, pasta de dente e água no rosto; Telefone toca. E eu saio às 10 e tantas da manhã com um conhecido bêbado, e meu namorado, Rodrigo, dirige. O objetivo é beber mais, e eu não entendo, mas rio um pouco porque Rodrigo e seu primo bêbado, Bruno, tem uma daquelas conversas explícitas. O objetivo era chegar a um bar/restaurante chamado Vovô Tino, mas aparentemente onze horas é cedo demais pra abrir num domingo chuvoso. Saímos do carro e o Bruno continua andando na chuva rala, porque tem um bar naquela rua e a gente ficaria lá esperando. Era um daqueles botecos bem sujos e cheios de gente entorpecida pela cerveja e pela tristeza. Eu entro e o cheiro de urina e cigarro faz meu nariz coçar. Sento e Bruno pede uma cerveja, enquanto Rodrigo insiste em colocar alguma música em um daqueles jukebox pré-históricos. Perfeito, então, tudo acertado, eu recuso a cerveja porque ainda estava cedo demais e enjoado demais. De repente, aparece um homem muito acabado, cheio de cordões e penduricalhos, seu rosto pouco discernível atrás da barba mal-cuidada e do cabelo sujo. E Bruno, bêbado, puxa assunto -- No começo, confesso, senti um pouco de medo, ou receio: Preconceito, coisa que todo mundo tem, mas quase ninguém admite. O homem, que depois apresentou-se como Raul, olhou feio pro primo, e depois sorriu como faria para um velho amigo. Ali, começava uma experiência antropológica e humanista sem fim, porque até agora posso senti-la em minha pele, meus ossos...
Percebi que Raul, ou seja lá qual fosse seu nome, era um homem com rosto, e não só a escória em que se mantinha. Era uma criatura danificada e cheia de perdas e cheia de dor. Mais tarde, conversando com Bruno, falaria da mãe que perdera, e pediria um cigarro: Ofereceria uma moeda pelo cigarro, "porque era homem digno", dizia, "e não um pedinte". Então atentei ao bar e a cada pedacinho daquele mosaico complexo, que era aquele ambiente. O dono do bar, homem vivido e com olhos claros e experientes, que servia bebida de graça pra quem não podia pagar, porque apesar do vício, entendia que doía menos pra cada um deles se estivessem em seu torpor. E não tão distante, o amigo de todos, pagando as nossas fichas do jukebox e pedindo só uma música sobre amizade, porque aparentemente era tudo o que ele tinha. De repente, entra um terceiro homem, apoiado em bengalas e com uma das pernas consideravelmente mais fina que a outra. Derrame, dava pra notar. Ele passa discretamente, pega sua cerveja, acende um cigarro, a despeito de sua saúde prejudicada. Cada um deles caracterizando um tipo de pessoa, todos feridos, e todos gentis. Nosso grupo montava um contraste gritante no começo, mas depois de um tempo, eu já não me sentia tão diferente. Todo mundo ali tinha perdido alguma coisa.
A hora do almoço vai se aproximando, e um fogão improvisado é aceso bem perto da nossa mesa. Algumas senhorinhas aparecem, uma delas parecia ser a esposa do dono do bar. Elas fritam peixe e batata, servem com salada pra todos que pediam. Eram aquelas senhorinhas que sentavam na frente da televisão e discutiam a sociedade atual e sua imoralidade, mas conviviam perfeitamente com todos aqueles homens tristes, bondosos e sem propósito. Oferecem comida a Raul, mas ele recusa. Um cachorro aparece, começa a comer os restos, e sem que eu perceba, uma família entra naquele ambiente que eu considerava degradante até poucos minutos antes. Uma garotinha muito branca de olhos claros e cabelo negro sorri pra mim e engole sua batata frita com um gole de refrigerante. Eu sorrio de volta, desnorteada. Bruno tira uma foto com Raul e eu acho engraçado. E aí ele e Rodrigo olham pra mim e eu admiro a humildade nos olhos de ambos. Ele diz "Gentileza, é isso. Se você é gentil com o mundo, o mundo é gentil contigo. Eles não vão se recuperar aqui, não é ambiente pra isso. Mas eles não são piores que nós". Aquele botequim era cheio de ensinamentos tão grandes, era só atentá-lo por um momento, e ainda assim, ninguém conhecia, porque todo mundo pararia no bar/restaurante limpo e caro da esquina. Eu sinto vontade de chorar e a gente sai, bem a tempo.
E eu, que já estive em tantos lugares, nunca tinha percebido que a sarjeta era feita de perda e poesia. Feita de fraquezas e amores. Da falta de lar e da inquietação de espírito. A vida é mais simples do que parece.

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