Último conto de frios lábios.


Ele sai da água.

O mundo parece nem ligar para o que está acontecendo. Pedaços boiam, e pessoas perdidas choram, gritam e se perdem de seus pedaços, se perdem umas das outras.

Tentam desesperadamente chegar à algum lugar. Ele procura nos rostos e não vê nada. Ele não vê o que quer ver. Olha pra baixo, água turva e gelada -- um céu negro, onde ele é só mais uma das estrelas desesperadas que vagam por ali. Ele vê. O ponto branco subindo, devagar demais. Não conseguiria cruzar a imensidão de um céu gélido e impiedoso como aquele. Os segundos parecem horas enquanto a estrela cadente alvíssima cruza a escuridão, mas horas passam rápido demais. Ela não vai conseguir. Agora sim, ele é mais uma daquelas estrelas desesperadas tentando chegar a algum lugar. Ele afunda.

Cada braçada faz o tempo voltar.

Ele está novamente no barco e o barco está navegando. Está olhando o mar, apoiado no parapeito, se perguntando, sem muito interesse, onde estava seu maldito paletó. Ele está longe da pista de dança, mas não tira os olhos dela, soltando a fumaça do cigarro, devagar. Tenta não pensar em nada. Continua a observá-la de longe.

Ela é a noiva, e é muito mais bonita do que a coisa mais linda que ele poderia imaginar. Ela sorri e cumprimenta as pessoas.

Os olhares deles se cruzam por alguns instantes. Ela odeia quando ele fuma. O sorriso perfeito dela só se desfaz quando ninguém mais pode ver. Só ele. Ele ama seu rosto sério. Ela pega o cigarro e joga no mar. Não diz uma palavra enquanto cruza os braços e deixa os olhos acusadores fazerem com que ele sinta vergonha. Só ela pode fazer isso. Ele abaixa a cabeça e diz que precisava relaxar, ela responde que ele está numa festa, como se fosse o suficiente.

Silêncio. Uma cena inusitada, mas que sempre acontecia entre os dois. A conversa simplesmente morria. Sempre ficava uma sensação de que algo estava errado. Algo estava errado. Ela o abraça e ele a aperta. A sensação da pele dela tocando a sua é prazerosa como raios de sol no dia mais frio do ano. Ela sussurra -- "a culpa é toda sua". Tudo o que ele pode dizer é que sabe disso. Ele quer dizer mais, muito mais; Mas já perdeu esse direito há muito tempo: Ele é só o padrinho. Eles olham um para o outro. Ela não diz nada, ele também não. Os dois querem, mas também sabem que não precisam. Eles não precisam dizer nada. E ela volta pra pista de dança, pro vestido branco, pro sorriso falso, pro noivo, pra felicidade -- enquanto ele acende outro cigarro.

As braçadas não parecem fazer efeito algum. Ela parou. Está subindo devagar, já não mexe mais os braços. Ele está com medo. Não a quer sozinha. Se esforça mais e continua descendo. Encontra os olhos dela. Ela o vê e seus olhos dizem tudo.

"Subi devagar, queria ter certeza de que você não estava aqui". Os olhos dele imploram. "Vamos subir agora". Ela sabe que não é possível, que não vai conseguir. Só agora ele notou que tem sangue por toda parte. Ambos se encaram e os olhos dela dizem que não importa. Os olhos dele choram. As lágrimas dele são como as palavras: invisíveis -- "Me desculpe. A culpa foi toda minha", mas os olhos dela repetem: "não importa". Não dizem "eu te amo" ou nada disso. Não precisam. Sempre souberam que um amava o outro e aquela não era hora para coisas desnecessárias. Ele leva seus lábios aos dela e eles se beijam. Trocam o ar. Ele quer mais, porque a amou a vida inteira, e aquele era o fim. Os lábios se desgrudam; os olhos dela permanecem mudos. Ela afunda. Ele sobe. Ela já não respira, ele ofega. Ambos morrem.

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