O demônio de olhos brancos e as lembranças carbonizadas


Essa noite, sonhei com fogo. Eu jogava gasolina em uma pilha de cartas e fotografias. Sorria enquanto riscava um fósforo. Via meus olhos flamejantes de excitação por deixar o passado numa pilha de cinzas borradas. O fogo consumiu tudo em um piscar de olhos. Quando acordei, tinha sido consumida também.
Essa noite, havia um demônio em meus sonhos, e ele me encarava através da fumaça avermelhada das chamas e chances. Seus olhos eram surpreendentemente brancos, sua imagem era um reflexo meu, tentando me ludibriar. Ele falava sobre meu medo de estar só, meu medo de estar com as pessoas e meu medo do futuro. Falava sobre o medo que eu sentia do cheiro de cigarro que vinha com um afeto incomum, do gosto de menta que vinha junto com o som de algumas vozes e da melancolia que vinha ao ouvir algumas composições clássicas. Ele falava e falava e suas palavras tinham pontas afiadas e cortaram meu coração. Eu sabia que a única maneira de matá-lo era queimando as lembranças, e por isso, atirei meu passado impiedosamente nas chamas famintas.
O que realmente me incomodava?
Seus olhos muito brancos.
Eram vazios. Superficiais. Não representavam coisa alguma.
A palavra demônio era apenas uma atribuição daquele pesadelo -- Não era necessariamente uma criatura vil, embora a meu ver ela fosse completamente maligna. Aquele meu retrato, visto através daquele calor atordoante e com cheiro de álcool e gasolina, era uma versão crua de mim mesma. Como uma página em branco, sem perspectiva, sem sonho, sem mágoa. Feroz e crua. 
Queimei, então, até aquele broche que ele me deu. Queimei as cartas e as fotos daqueles amigos que ainda me remetiam cumplicidade. Queimei os ingressos, as flores, as fitas. Toda a cor virou fumaça, e quando eu finalmente queimei tudo o que importava, o demônio sorriu. Seus olhos continuaram brancos. 
Despertei, o calor no meu corpo me lembrava das chamas. Eu me senti consumida. Entendi que a plenitude vem com um preço muito alto -- Para ser plena, deveria abrir mão do passado. Mas meu passado me define. E pra ser plena, eu deveria seguir em frente, mas continuava presa e parada não só embaixo dos lençóis, mas em todos os aspectos da minha vida. Respirei fundo e decidi fazer tudo aquilo que queria -- Confessaria que estou apaixonada e perderia. Confessaria meu ódio perpétuo pela proibição. Dançaria até a última linha com a última nota musical. Eu decidi ser tudo o que ainda não tinha sido, e coloquei os pés no chão.
Até que me lembrei.
Eu queimei tudo, e o demônio não morreu. Ele apenas sorriu.
E se os passos que decidi dar me levam ao passado?

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