Profanação pt. 1 - A meritocracia inventada

Fiquei te encarando assim que você chegou e não consegui desgrudar os olhos dessa imagem distorcida que meus olhos criaram.
Sempre me disse três coisas: As pessoas não vão gostar de você. O mundo é cruel. Você tem que ser a melhor.
Por tanto tempo, esses eram meus mandamentos, minha religião cruel e minhas regras de sobrevivência. Pra você, a doçura não poderia sobreviver. Amargava meus dias e meus sonhos, salgava minha imaginação com o pragmatismo e a ambição daqueles que trabalham muito e sonham pouco.
Eu desejei por tanto tempo ter essa sua determinação, como quando eu acordava de madrugada e me esgueirava na janela só pra ver você sair pro trabalho. Achava bonito e ainda acho, essas coisas que fazem e dizem que é por amor. Esse suor que santificam, elevam. Eu sempre reconheci seu suor, sua força de vontade, e como aquela menina tão cheia de poesia e com dois pés esquerdos, eu lutei por tanto tempo contra o que eu era e me forcei a ser tudo aquilo que eu jamais poderia ser. Eu nunca fui gananciosa. Eu nunca fui brigona. Eu não conhecia palavras ferinas o suficiente. Nasci pra ser aquela criança tímida que era tão introvertida que sequer falava enquanto brincava de boneca, casinha ou armadilha. Mas você sempre foi minha lembrança ambulante do quanto eu tinha que ser especial. Do quanto eu tinha que me esforçar, dar duro, e ignorar todas as distrações pelo caminho.
Você me fez acreditar que ninguém jamais seria capaz de me amar. Eu me entregava aos meus desenhos e todos eles mostravam lobos se casando, tendo filhos. No canto da folha, eu sempre encontrava um lobo vestido de ladrão. E compulsivamente rasgava o canto das páginas pra impedir que aquele lobo roubasse meu futuro brilhante. Mas ele sempre roubava a noiva e a carregava, e eu acordava com meu coração pesado porque tinha sido roubada e teria que recomeçar.
Eu divagava e você cortava. Eu dançava e você dizia o quão ruim eu era naquilo. Eu desenhava e você me lembrava que eu tinha que ser melhor. Eu dava o meu melhor, e não era o suficiente.
Depois, eu decidi que você não merecia. Foi naquele dia em que eu reconheci qual era o seu verdadeiro Deus (e corrompendo seu sistema meritocrático inventado, seu Deus era a rejeição do amor - e talvez por isso meu amor também fosse rejeitado). Eu corri pro armário enquanto ainda cabia nele e destrocei seu santuário. Encontrei as fotos do que você amava e elas eram sujas, sujas, sujas (ou você me ensinou a acreditar que era sujo, e não importa quantos banhos eu tomasse, eu nunca tirei aquela sujeira de mim). Ali, a revolução. A revolta. A rebelião. Ali, a desconstrução da criança. A corrupção da pureza. Adeus, inocência.
Obrigava minha língua a profanar meu amor incondicional por você e já não te esperava nas noites frias no sofá. Meu coração não doía mais com suas palavras, mas eu ainda jogava seus chás venenosos e seus cigarros no vaso sanitário.
Você vê, minha vida inteira eu acreditei que tinha que ser como você. Mas hoje eu sinto tanta pena do que você é. Eu sinto tanta pena da sua falta de coragem, da sua falta de amor-próprio e das suas falhas lamentáveis que mal consigo suportar sua visão. Eu sinto essa raiva descomunal por perceber que eu não sou coisa alguma, e isso é verdade, mas ainda sou tão mais do que você. Eu sinto essa vergonha por perceber que você clama ser muito e não é, e finge que eu tenho que ser assim, mas essa ambição não me cabe e essa filosofia é barata demais. Eu te considero uma figura patética, implorando assim. Gritando assim. Atirando as coisas por aí. Dando seu coração à lata de lixo. Me dói tanto notar que você me ensinou essas palavras amargas que agora eu penso e dirijo a você. Essa violação é insuportável.
Quando eu olho pra trás, eu só quero sobreviver e recuperar o bebê que seguro nos meus braços, que sou eu. Eu quero proteger essa criança e amá-la. Eu quero encontrar as fotos antes dela, e quando ela entrar naquele quarto escuro, não vai encontrar nada nas caixas. Eu quero impedi-la de atender ao telefone, quero privá-la das ameaças, quero degolar cada um dos seus agressores. Eu quero assassinar as lacunas, pra deixar a pobre menina com boas lembranças. Pra ela crescer sem maiores dificuldades. Eu quero recuperá-la e protegê-la desse fracasso que você sempre foi. Eu quero uma ressurreição.

Comentários

Postagens mais visitadas