Três sombras

O primeiro me esperava na borda de uma cama macia. Seus olhos verde-exaustão me encaravam e me violavam com desespero. Ele repetia, de voz embriagada, as mesmas palavras daquela quarta-feira de sonho. "Eu vou me lembrar, eu vou me lembrar, eu vou me lembrar", como quando eu perguntei "Você vai se lembrar do que me disse essa noite?" ao me pedir pra ficar e abrir o coração. E ele de fato respondera, naquela realidade de forma muito mais doce e com um beijo macio, que se lembraria, que ficaria. E ele continuava a repetir freneticamente que se lembraria, e enquanto a cena se repetia diante dos meus olhos e eu o via me pedindo pra ficar, uma cesta atraía meus olhos. Eram palavras de todas as cores e todos os tons -- palavras tristes, esperançosas, enraivecidas e amorosas -- todas dormindo ali, numa cesta aos seus pés. Eram todas as palavras que eu já dedicara e ainda dedicaria a ele. E então, algo acontecia. As palavras se alvoroçavam e dançavam, mas os olhos dele já estavam perdidos. E quando eu olhava pr'aquele olhar de menino assustado, ele piscava sem me reconhecer. Era a primeira fase do terror, a primeira sombra da dor. A distância glacial de quem sentenciou presença e perpetuou afeto.
A segunda me esperava com as rugas de ódio. Balançava a cabeça em reprovação e cuspia em mim. Eram gestos repetidos, como cenas em replay ou bonecos de parque de diversão. Me aguardou naquela magreza tosca e arreganhou os dentes para mim. "Ninguém jamais vai te amar, jamais vai te amar, ninguém jamais vai te amar...". Tentei correr, mas ela me agarrava pelos cabelos e me atirava lixo e me obrigava a catá-lo. E eu me esforçava e subia naquela grande pilha de porcaria, e organizava tudo, e me provava, me esforçava, me debatia -- Mas jamais conseguia terminar. Jamais alcançava o sucesso, a aprovação e o silêncio. Ela não me deixava em paz. Era a segunda fase da angústia, a segunda sombra de dor. A violência presente no amor doente.
O terceiro me aguardava na árvore. Sentado sutilmente com uma caixa nas mãos. Me olhava com olhos de criança e implorava com o corpo inteiro enquanto eu me aproximava desesperada, sem compreender. Ele nada dizia, apenas segurava meus dedos e me fazia sentir. E eu sentia. Via em seus olhos de madeira cores e casos, dores e acasos. Via tudo o que ele faria e já tinha feito por mim. Via aquele amor incondicional de abnegação e nobreza, aquela entrega intensa e doente, carente e desejosa pelo meu toque. No começo, era gratidão, porque ele chegara debaixo daquela árvore pra mostrar que os dois anteriores estavam errados, e que eu merecia amor e o teria! Então, sua obsessão por mim envenenou meu coração, e transformou a gratidão e a esperança em medo e culpa. Ah, como eu me sentia culpada. E então, ele abria seus lábios bem desenhados e se aproximava para beijar-me a boca. E como que aceitando comiseravelmente meu destino imutável, eu permitia. E antes de beijar-me, ele sussurrava "Você me abandonou". E enquanto eu respirava aquele ar e aquelas palavras, um grito enchia o ar e ele se transformava. Seu rosto se retorcia e a caixa caía no chão, com um coração pulsante, negro e ensanguentado que rastejava em minha direção, e tentava me prender, e crescia, crescia, e se expandia. Até que o sangue e a escuridão me engoliam. Era, então, a terceira fase da mágoa, a terceira sombra de dor. A dor daquele que me perdeu. A alma, por fim, enegrecida e violada, abandonada por ter abandonado.

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